sexta-feira, 31 de agosto de 2007

Caceada

Quando chegar enfim o dia
Em que o desejo não querido dos meus amigos tristes se me apresentar
Sentirei saudades de Rosa
E das histórias que me contava.
Sentirei saudades de Dora
Dos peitos que ela me dava
E dos filhos que planejamos.
Pensarei com pena em minha mãe.

Sentirei o cheiro bom de alguma antiga namorada
E lembrarei de todo meu inconsciente
como quem encontra um amigo abandonado.
Contra minha vontade, que um dia tive,
Me vestirão terno e paletó.
Que eu não quis vestir no casamento.

Parecerei outro, que já não sou
E que quiseram haver sido.
Lembrarão com orgulho de minha pobreza de espírito
E uma certa melancolia.

Alguém (aplausos!) rirá.

sábado, 25 de agosto de 2007

Trilogia dos Tempos Históricos: O Despertar de Letícia ou Dos Perigos de Acordar Com a Língua no Teto

Certa noite, ao acordar de sonhos comuns, Letícia percebeu sua língua, por um prego velho, presa ao teto e talvez doesse um pouco. Tinha metade dos pés apoiada num banco frouxo de madeira. Mais do que dor, sentia um certo constrangimento por aquela situação.

Não conheci os fatos (claro que não falava, pensava, pois falar não parecia adequado naquele momento). Fui posterior aos eventos e ainda assim os comentava, zombava deles, tecia opiniões. Achava-me entendida no que não vivenciei. Podia, então, puxar a língua para sair desse embaraço, mas isto poderia causar algum transtorno, como manchas difíceis no seu vestido (se bem que, de imediato, isso não conseguia alcançar: caso conseguisse puxá-la, a língua presa ao teto teria tanta utilidade quanto solta pelo espaço).

Só pude ouvir um lado, uma versão dos episódios. Inspirada por eles, por estes comentários espalhafatosos, subvertidos, hiperbólicos, fúteis e ardilosos, estas falas pernósticas e parciais, cheios de rancor e melancolia, achei-me conhecedora de toda psicologia e toda História.

E foi assim, presa ao teto, que Letícia compreendeu a multiplicidade do mundo. Não dá para atingir o que, sem mim, já se passou, e não posso me achar sábia pelo que apenas ouvi (Ela se sentia muito inteligente pela descoberta; contudo, continuava com sua língua apreendida ao telhado).

E não caia sangue em parte alguma...

E foi pela manhã que acordou enfim em sua cama, e, embora para infelicidade de alguns, com a língua guardada dentro de sua própria boca.

sábado, 4 de agosto de 2007

Tetralogia do Assassinato: O Interruptor

Há uma coisa que acho bem bacana. Sofisticado. Interruptores. Um simples toque para tornar a escuridão em uma luz majestosa ou aconchegante.
Considere um homem que esteve por muito tempo preso no escuro. Ele tateia as paredes. Encontra um interruptor e... Voilá. Fica cego por um instante com a nova claridade. E, acesa por outra pessoa, isto pode muito bem ser feito de sacanagem. O homem que esperava o trovão ou esfregava pauzinhos para conseguir um pouco de fogo, luz, olhando as estrelas já sonhava com interruptores. Tiffi. Basta um clique.
Dá muito mais trabalho quando você decide se envolver assim com a outra pessoa. A conheci num bar perto do cinema. Basta um olhar de Jhonny Deep e uns dez minutos de Fred Astaire. Ela é bem bonita. Jogada assim na cama. Mas mora sozinha, nesse apartamento. Me disse que seu James Bond favorito era o Roger Moore. Disse que o meu também. Menti.
- Cena de beijo?
- A Um Passo da Eternidade. E você?
- Um Corpo que Cai, do Hitchcock.
Estou sentado ao lado do interruptor que abaixo delicadamente, brincando. Um botão bem leve e pequenino pode ser levantado e abaixado com sutileza e o corpo lindo e lívido na cama é visto afundando na penumbra, sumindo na escuridão para, depois, ressurgir na claridade.
Quando diminuo a luz a última parte que vejo evanescer são seus pés. Pequenos e brancos. Dá muito mais trabalho. Arrancar as unhas, limpar cada coisa que tocou, procurar fios de cabelo. Excluir toda intimidade que tivemos.
Um dedo aciona um botão para cima ou para baixo e o que antes era invisível, inexistente. Agora pode ser visto. Começa a ser. É isso que faço agora. Não necessariamente pela brincadeira. É muito mais pela espera. Titubeio entre ficar aqui e deixar que me descubram ou descer as escadas e ganhar a rua. A primeira opção é algo que jamais experimentei. Já conheci todas as diversas formas de matar: pessoas conhecidas, desconhecidas (como esta), devagar, rápido, com e sem contato.
Eu tenho uma teoria: a vida é uma dádiva única e cada evento que ela puder nos dar deve ser experimentado. E é isso que busco. A experiência da morte, tida uma vez apenas, não pode ser relembrada, revisitada, não sabemos nem se poderemos apreciá-la plenamente quando se apresentar a nós. Não deveríamos passar. pela vida com tanta displicência. Inevitavelmente, não teremos outra. Decidi saboreá-la com todos os detalhes que ela me dá, no máximo de possibilidades que ela permite. E a morte de outro, o assassinato, é uma delas. Responder aos instintos e aos desejos, como crianças. Com egoísmo e inteligência.
Vi a garota sozinha no bar, conversamos sobre filmes e ela ria com tanta facilidade. Curvava a cabeça e ficava fazendo bolinhas no dedo com a borda do vestido. Não devia ter tomado tantos martinis. Gosto de senti com precisão o que faço, cada prazer e toque que recebo, sem a interferência de nenhuma estupefaciente. Quando saímos, me ofereci para ir com ela até seu apartamento. Sorriu, assentindo.
Me convidou para subir e continuamos conversando. Falávamos essencialmente sobre cinema.
Sabe aqueles filmes em que um cara vai casar em uma semana e uma garota está noiva de algum outro cara, mas eles se gostam apesar do compromisso com outras pessoas? No final, eles ficam juntos. Ninguém lembra dos abandonados. Porque somos egoístas, perversos, como crianças. Naturalmente, nossa própria vida é nossa óbvia prioridade. E por isso que não há maldade no que faço. Encerrar uma existência é. para mim. provar mais um pedaço de viver. Queria poder não deixar escapar nada. E sentir tudo de bom que ela tenha para mim.
Ela trouxe um cobertor delicioso para o sofá e pôs Jules e Jim para assistirmos. Nos acariciávamos. deixando o filme como um elemento superficial sem muito interesse. Foi maravilhoso. Todas as sensações que tive. Seus sorrisos. Começamos a transar e eu apertei seu pescoço com suavidade. Sem sair dela, levei seu corpo pequeno até a cama. Passava a mão no meu rosto com tanta beleza. Sufoquei-a com força e ela ainda sorria. Depois, seu rosto preso num espasmo de medo e prazer. O prazer imenso que ninguém deve deixar de experimentar.
Apago a luz novamente e hesito em frente dela.
Coisa incrível os interruptores.