terça-feira, 11 de dezembro de 2007

Tetralogia do Assassinato: O Duplo.

___Todos seguiam normas bem sólidas em todos os quartos da pensão de três andares da Rua Santa Cecília, nº 12. Mas eram ainda mais consistentes as normas que regiam as vidas de cada um dos moradores dos dois únicos quartos do primeiro andar. Moravam ali há muito tempo o Sr. Esaú e o Sr. Jacob. Embora vizinhos, toda ligação que possuíam era composta pelos jogos de cartas nas quintas à noite, algumas Palavras sem substância balbuciadas quando se encontravam na porta ou na escada, e uma habitual troca de alimentos quando necessário. Mesmo nas noites de jogo, sempre preferiam se trancar num concentrado laconismo. Falavam pouco mas jogavam muito bem: e assim uma noite na semana desaparecia rápido e fazia um pouco de sentido.

A amizade corria tranquilamente, pois era sustentada em tais obrigações sólidas, mas completamente leves, como arrumar bem as cartas e a mesa depois de cada partida. E a mais necessária era que não se perguntasse nunca como o Sr. Jacob conseguira a contundente e hedionda cicatriz que lhe enfeitava o rosto. Isto, com o tempo e a freqüência da visão daquele rosto talhado da bochecha ao alto do olho direito, foi ganhando cada vez menos importância. Certamente, no princípio Esaú se sentira curioso em saber como o amigo adquirira aquela marca, mas ainda não se sentia suficientemente íntimo para perguntar. Quando já se acreditava assim, simplesmente não se interessava mais por isso. Agora não se lembrava mesmo de jamais haver tido qualquer interesse pela cicatriz, como também não se lembrava sempre do aluguel e de outras coisas. E nada disso realmente importava para ele, desde que se jogasse cada partida com sagacidade e vigilância.

Diz-se por aí que, certa vez, quando ainda era novato na pensão, a senhoria insinuou perguntar ao Sr. Jacob sobre a cicatriz... E ele se tornou tão horrivelmente irritado nesta ocasião que substituiu seu habitual mutismo por um jogo de Palavras sussurradas, mas perfeitamente audíveis, cheias de imprecações contra todos os que passavam por perto; um jogo de murmúrios que durou todo o dia. Nunca mais se pensou em perguntar nada daquilo; e o Sr. Esaú fora avisado sobre isso logo nas primeiras semanas em que se alojou na casa.

A senhoria, uma mulher robusta e esperta, morava em todo o último andar com seus quatro filhos (que pareciam incontáveis quando começavam a correr pelo prédio). No andar térreo, ao lado do portão da escada, possuía um bar que administrava detrás do balcão em praticamente todas as horas do dia, deixando as crianças livres em suas brincadeiras. O Sr. Esaú as tolerava e Jacob simplesmente se esquivava delas.

Certo dia, porém, ainda em suas primeiras horas, aconteceu que a chuva correu por toda a cidade, e não permitiu, com suas ruas alagadas e problemas estruturais, que nenhum dos dois alcançasse seu trabalho. O Sr. Jacob ligou do telefone do bar para a marcenaria onde trabalhava, e pode perceber pela voz do patrão que ele calculava pela última vez quanto perderia num dia em que todos faltaram por causa da maldita chuva. O Sr. Esaú ligou para a loja de tapetes, onde sabia que era mantido apenas por piedade, mas ninguém atendeu. Estavam os dois a poucos anos da mirrada aposentadoria.

Naquele dia, decidiram ficar estendidos na mesa do bar e beber um pouco. Pediram cerveja e dois copos. Apesar da bebida, suas línguas não se tornavam mais soltas. Sob o toldo da frente e o teto um bom número de pessoas tentava se proteger do ameaçador e inconveniente temporal. O bar nunca esteve tão cheio! Um grupo de estudantes entrou e atraiu a atenção dos dois; olhando para elas, os velhos murchos e invejosos aparentaram cobiça pelos anos longínquos da juventude. Mas, ao voltarem o olhar para seus copos, enrubesceram, e se tornaram ainda mais silenciosos e melancólicos.

Duas das crianças da senhoria brincavam entre os encharcados visitantes inesperados. Pela primeira vez o bar fervilhava. A senhoria passou um pano vermelho e velho sobre a mesa onde eles estavam, colocou os copos e disse:

- Será uma pena quando tiver que colocar toda essa gente para fora. Mas vai ter que ser assim ou daqui a pouco a água inunda toda a casa e vamos ter que nadar até nossos quartos.

Ela se achou engraçada, mas os homens ouviram quietos.

O Sr. Jacob saiu dizendo que em breve voltaria para uma partida. Passadas as primeiras horas da manhã, em que os mais medrosos e os mais afoitos se arriscavam a sair de casa, Esaú via as ruas desertas onde parecia correr um rio sobre o asfalto e pensou então que aquelas construções à frente voltariam a um estado anterior, quando não existiam e tudo era verdadeiramente deserto. Pensou que a água e o vento arrastariam telhados naquela noite, arrastariam muros e sufocariam casas com terras que desabam; os navios vacilariam no mar, e, no campo, árvores seriam lançadas ao chão e raios matariam alguém.

Perdido nesses devaneios, como o outro não retornava e para se desvencilhar do marasmo satisfatório e entristecedor em que se lançava, decidiu ele mesmo subir as escadas e ir começar o jogo. No espaço sob os degraus, ao qual chavamam com cortesia de armário, encontrou cabisbaixo o garoto mais velho, que era geralmente o mentor das brincadeiras dos irmãos, mas, segundo refletiu, não devia estar gostando daquele dia de chuva barrenta e incômoda.

Quando bateu à porta, ouviu com surpresa a voz bêbada do outro lado.

- Entre.

Jacob estava visível e transtornadamente embriagado. Contudo, seus gestos ainda eram calmos e conscientes. Indicou uma das cadeiras para que Esaú se sentasse.

- O que você quer eu sei. Eu sei o que você veio descobrir aqui em cima. Estão todos me devorando constantemente para que conte a história da minha cicatriz. Todos me olham sedentos para sugar minha vida. Basta pedir que eu te conto, ora. A você eu conto, pois é quase tão miserável quanto eu.

Sinceramente, Esaú estava contente em ver Jacob daquele jeito. Teria enfim o que lhe entreter naquele dia vazio. Sim, a chuva caia sobre toda a cidade, sem que nenhum jornal a houvesse anunciado previamente. Disse que sim, que sempre quis ouvir a história da marca, embora isso nem lhe passasse pela cabeça no momento. Gostaria era de saber como o amigo se embebedara daquela forma. Disse isto para poder se distrair: sim, quero ouvir a história sobre a cicatriz. Ficou contente pela situação do outro e pela distração inesperada. Sorriu.

Sentado sobre a cama com os olhos enormes, Jacob parecia mais sóbrio. Suspirou e começou sua história com voz firme.

“Eu ainda era muito pequeno quando os dois garotos de minha rua sumiram repentinamente. Não podíamos nos afastar para muito longe de nossas casas e devíamos sempre andar em grupo na volta da escola. Vivíamos sem poder correr dos olhares atentos de nossas mães.

“Ninguém sabia ainda o que tinha acontecido: nossas mães diziam coisas terríveis para nos assustar e nos manter na linha e davam consolos animadores e prósperos umas para as outras, principalmente para as mães dos garotos desaparecidos.

“Mas éramos crianças e não tínhamos os mínimos interesses nessas cautelas. Às vezes tínhamos mesmo invejas dessas crianças perdidas que podiam estar se divertindo bem mais do que a gente, num lugar sem preocupação e vigilância.

“Sei que desconfiavam de um homem que morava no fim de nossa rua, embora fosse muito pequeno naquele tempo. Entendia isso das frases baixas e entrecortadas que elas me deixavam ouvir. Só não sabia bem do que desconfiavam. Trabalhava em uma fábrica de alumínio e as mulheres suspeitavam dele porque era sério e não costumava conversar com os vizinhos, ao contrário de seus maridos e amantes beberrões cheios de piadas e gracejos imbecis o tempo todo.”

A voz de Jacob alteava-se e Esaú pedia que falasse mais baixo, não para acalmá-lo, mas para que pudesse saborear melhor a história. Se ele narrasse mais lentamente, podia perceber melhor em seu rosto o transtorno e as rugas que a história trazia à tona.

“Um dia, consegui escapar com um amigo das atenções de minha mãe e fomos brincar num riacho ao lado da minha rua. Sabia que ali não seria pego e que, caso acontecesse algo, eu poderia correr e, subindo por um caminho que julgava desconhecido por todos, rapidamente voltar para minha rua em menos de um minuto.

“Crianças nunca imaginam que seus caminhos secretos são, na verdade, caminhos que todos sabem onde estão e como chegar neles.

“Qual não foi minha surpresa quando vi atrás de nós um homem de expressão contumaz e sorriso atraente. Ele perguntou se nossas mães sabiam que estávamos ali e, claro, nós mentimos. ‘Sim, senhor. Elas sabem’. Sentou-se ao nosso lado e disse que podíamos continuar brincando, que não queria nos atrapalhar em nada. Apenas ficar nos observando brincar, era tudo o que queria. Eu devia ter menos de 8 anos naquela época, entende, Esaú? Bem menos de 8 anos.

“Tirou um pião do bolso e disse que poderia nos ensinar a melhor maneira e mais divertida de rodar o pião e empinar pipas. Ensinou-nos também a fazer brincadeiras com nossas sombras em posições engraçadas, enquanto contava histórias hilárias que nos faziam rir. Ele conhecia todas as histórias e imitava mil vozes. Ao terminar toda aquela encenação juvenil, que muito nos agradou, despediu-se e caminhou até o alto do barranco que levava a nossa rua. Ainda ríamos, eu e meu amiguinho, quando demos tchau. Estávamos felizes por conhecer um adulto realmente divertido.

“Já no alto, ele virou a cabeça para nós e sorriu. Voltou. Disse que conhecia um lugar onde nossas sombras formariam figuras tão legais que poderíamos pegar nelas como balões.

“O curioso é que até hoje não sei o que foi feito do outro garoto. Acho que correu sorrateiramente de volta quando cruzávamos, apressados, as árvores que fechavam o caminho. Quando me dei conta, estávamos eu e o desconhecido numa casa abandonada cheia de garrafas quebradas, sacos plásticos, seringas, papelões e outros lixos.

“Eu disse a ele que naquele lugar fechado não ia haver sombra nenhuma e ele era um mentiroso. Ele sorriu para mim e, inclinando meu corpo para o chão, disse que eu veria muitas sombras, sombras que jamais havia visto. Deitou-me com um golpe e colocou aquele corpo grande contra mim. Senti-o sujo.

“eu me debatia e pedia que parasse, que saísse de cima de mim, por favor. Como resposta, pôs uma mão em minha boca e guiou a outra até minha bermuda. Tudo isso fazia com um sorriso, um riso contente, dizendo que tudo ia ficar bem. Seu corpo pesava cada vez mais sobre mim. Eu odiava muito aquele homem e sentia muito, muito medo. Senti que lágrimas começavam a tornar estrelada minha visão. Por fora de seu gigantesco corpo, consegui pegar uma garrafa em minhas mãos pequenas. Ouvi o estalido do vidro quebrando e acho que ele também ouviu. Mas, rapidamente, antes que qualquer um de nós percebesse, fiz o sangue jorrar em seu rosto. Da meia-lua vermelha que abri em sua face gotas rubras caiam em meu rosto e na sua camisa.”

No chão, Esaú quedou-se assustado e boquiaberto. Comprimiu a cabeça contra as mãos, mas os seus lábios se esforçavam em traí-lo. Havia um tremor comprimido em todos os seus gestos. Sentia sua cabeça perdida diante das Palavras que já não discernia: “batida”, “chão”, “sangue”, “fuga”. Ouvia o som da chuva.

Sim, a chuva de todos os tempos e todos os medos caia no emaranhado das últimas frases do Sr. Jacob. A chuva real escorria pelas janelas, destelharia casas e lavava todas as ruas. Limpava enfim a poeira acumulada por inúmeros dias nas bordas do vidro das janelas. Lavava as paredes e as telhas. O Sr. Jacob levantou uma última vez os olhos baixos, marejados e vermelhos, e disse:

- Pronto... Todos podem me odiar agora.

Quadrilha Dru Mundana

__________________________Para Vivi


encabelado amava curupira q amava um palhaço q amava uma hippie q amava vivi q amava arnaldo q amava betty boop

Encabelado teve uma overdose de Peyote
Curupira suicidou-se num Copo-de-Pinga
o Palhaço foi atropelado na Avenida
a Hippie virou Latifundiária
Vivi mudou-se pra Salvador
Arnaldo saiu dos Titãs
e Betty Boop se casou com um Acionista da PETROBRÁS,
q ainda ñ tinha entrado nesta História.


(Por Tiago Barreto)

sábado, 10 de novembro de 2007

Das Epifanias Agnósticas

Das Epifanias

Deus está morto, disseram os homens.
Enquanto, dos altos céus, Ele via morrer uns 30 ou 300.
- Deus adora um paradoxo.

Da Falta Delas

Homens muito ociosos
Fizeram Deus para si
Para em seguida se perguntarem
quando ele vai existir.

sexta-feira, 5 de outubro de 2007

A Terceira Margem do Rio

____________________a escritores nefastos (para ser lido em voz rápida)

Pedra da Palavra
Polpa da Palavra
Base da Palavra
Casa da Palavra
Pedra

Húmus: a Palavra
Água da Palavra
Proa da Palavra
Vela da Palavra
Rema.

A Palavra casa
A Palavra lava
Abusada Palavra
A Palavra estupra

Beija e chupa da Palavra
A língua com lascívia

A Palavra muda
Tece o verme da moral

Casca da Palavra
Leme da Palavra
Noite da Palavra
Luzes da Palavra
Larva

Roubam a Palavra
Luta da Palavra
Fogem da Palavra
Fodem a Palavra
Dilacera

Força da Palavra
Vivifica

Viva a Palavra
Lâmpada-Palavra
Alumia
Jogo da Palavra
A Palavra soa
Beijo da Palavra
Linda!

A Palavra é muita
A Palavra basta
A Palavra briga
Brinca da Palavra
Argola
Elo-cida

Corpo da Palavra
Véu da Palavra
Sombra da Palavra
Vulto da Palavra
Ofusca

Voa
Sobe na Palavra
Amada Palavra
Trepa na Palavra
Faz-lhe filhos

Morte na cabeça
A Palavra ressuscita

Usam a Palavra
Murro da Palavra
A Palavra esmurra
E te belisca
Asa da Palavra
Música

Nascente da Palavra
Estrela da Palavra
Circo da Palavra
Nuvem da Palavra
Romanceia

A Palavra é louca
A Palavra é pouca
Dentro do homem afásico nas mãos
A Palavra oca
Em nossa boca
No papel transcende.

segunda-feira, 24 de setembro de 2007

O Muro

“ela é bonita, não usa carmim”
Saint-Beuve


A garota do muro costumava passar boa parte da sua tarde sobre ele. Voltava da escola, almoçava, passava um tempo em casa arrumando o quarto ou mexendo em discos velhos da mãe e, depois, assim pela tardinha, lá ia ela para o seu muro. Adorava apreciar o sol desaparecendo em sua frente, sabendo que atrás as nuvens se arroxeavam até as primeiras estrelas começarem a aparecer. Devia ter uns 10 anos e, naquele ano, o hino da futilidade era alguma música da Britney Spears, mas ela gostava mesmo era da Madonna e da Cindy Lauper.
Naquela tarde, distraída por um disco do Cranberries, demorou um pouco mais para sair de casa. Chegando ao muro, o sol já coloria de tons laranjas vivos a parte bonita do céu no poente e um garotinho fazia xixi num cantinho da sua parede solitária, aquele próximo à árvore. Vendo-a, o garoto deu uma olhadela rápida - cínico! -, escondeu-se e fugiu. Quem ele pensa que é pra fazer xixi no meu muro? Como esse menino se atreve a molhar meu muro com seu pintinho? Ah, espera esse moleque passar por aqui de novo...
Os dias iam passando e o garoto sempre passava no finalzinho da tarde, ao voltar da escola, e ia olhando, cabisbaixo, a garota do outro lado da rua. Ela, sem se mover no seu muro, mirava sempre para frente.
Aconteceu que, uma certa tarde, o garoto parou na calçada em frente. Demorou um pouco, olhou os dois lados vazios, atravessou a rua, parou em frente a ela, de cabeça baixa. Ela abaixou a cabeça para o olhar, levantando-a logo em seguida. Ele olhava ora para os pés, ora para o alto, mexendo nas alças da mochila.
Baixou a cabeça, empinou a barriga para frente, segurando a mochila, e disse:
- Como é o seu nome?
- O quê?
- Qual seu nome?
- Isabela Carina.
- Hihi...
- Que foi?
- Nada... é que seu nome é estranho!
- Não é minha culpa, não fui eu que escolhi. E o seu? – ela abaixou a cabeça, fitando-o.
- Carlos Ludovico Neto. Gosto não: era o nome do meu avô.
Ela riu. E quando ria segurava bem firme a borda da parede e inclinava o corpo para trás. O menino continuou mexendo nas alças e brincando com os pés em pequenas voltinhas.
- Haha... Prefiro o meu, né?
Silêncio. Os olhos dos dois em coisas distantes.
- Você já beijou? – perguntou o menino.
- Por que você quer saber?
- Como foi?
- Um menino na escola. De brincadeira. Você é muito curioso.
- Eu também já. Hoje a professora foi se despedir de mim, e me deu um beijo bem aqui – e ele apontou um cantinho da bochecha bem próximo à boca.
Silêncio.
A menininha virou o rosto para trás, por um minuto pareceu que ela se esquecia dele ali. Depois, voltou-se e abaixou a cabeça para ele. Bailarinava os pés no ar; sorriu, brincando com o vestido rodado.
- Minha mãe sempre diz pra eu pensar numa cachoeira.
- A minha também diz isso.
Novo silêncio.
- Você tem irmão? – perguntou, inclinando a cabeça perto do ombro.
- Tenho. Um.
- Minha mãe disse que eu vou ganhar um irmãozinho.
- Meu irmão é muito chato e burro. Passa o dia todo escrevendo e-mails para a namorada cheios de exclamações triplas.
Ele não entendeu muito bem aquela informação e inclinou um pouco mais a cabeça.
- Você sabe brincar de morango invertido? – perguntou a menina.
- Não. Como é isso?
- Eu te ensino. Quer brincar? A gente pode ir no parquinho – e ela saltou do muro, e ajeitou o vestido. Vamos.
Foram andando, cada um em um canto da mesma calçada, distantes, às vezes lançando-se sorrisos tímidos de novos amigos.

sábado, 1 de setembro de 2007

Semierótico Nº 2

Eu sou o oceano:
escale minhas ondas
sonoras
e bravias
a Grande Mariposa azul grita:
escale minhas ondas
sonoras
e bravias.

o farol perambula de dia nas águas
soltando neblina e...
este é apenas o começo, querida.

a grande serpente dourada engole os peixinhos sagrados
as altas vagas de ressaca lambem o corpo na praia
o pequeno elefante escarlate nada em minhas areias
e o rei lagarto é a sua tromba:
distribuindo doces ternos entre as ostras.
- estamos novos demais para os doces das ostras.

a lua é o buraco no céu,
pálida,
a mãe-lua
o sol é nossa grande esfera de gelo
pedindo socorro:
filha, venha para mim.
a ilha no mar é o sol.

há muitas pessoas na terra
mas só há espaço para um corpo nos oceanos
os anjos sobre as águas clamam
ressonantes:
adentre as ondas
furiosas
e febris
adentre as ondas
desejosas
e mansas.

é a eternidade que chega
a eternidade com seus cabelos
entrando no mar.

comece um diário de bordo
afogue seus olhos na espuma
penetre a chuva milenar que dança:
escale minhas ondas
sonoras e bravias



_________________________escale minhas ondas
_________________________sonoras
_________________________e bravias

eu sou o oceano imenso
e abrigo um único corpo só
ah,ouça o som:
encontro a eternidade.

sexta-feira, 31 de agosto de 2007

Caceada

Quando chegar enfim o dia
Em que o desejo não querido dos meus amigos tristes se me apresentar
Sentirei saudades de Rosa
E das histórias que me contava.
Sentirei saudades de Dora
Dos peitos que ela me dava
E dos filhos que planejamos.
Pensarei com pena em minha mãe.

Sentirei o cheiro bom de alguma antiga namorada
E lembrarei de todo meu inconsciente
como quem encontra um amigo abandonado.
Contra minha vontade, que um dia tive,
Me vestirão terno e paletó.
Que eu não quis vestir no casamento.

Parecerei outro, que já não sou
E que quiseram haver sido.
Lembrarão com orgulho de minha pobreza de espírito
E uma certa melancolia.

Alguém (aplausos!) rirá.

sábado, 25 de agosto de 2007

Trilogia dos Tempos Históricos: O Despertar de Letícia ou Dos Perigos de Acordar Com a Língua no Teto

Certa noite, ao acordar de sonhos comuns, Letícia percebeu sua língua, por um prego velho, presa ao teto e talvez doesse um pouco. Tinha metade dos pés apoiada num banco frouxo de madeira. Mais do que dor, sentia um certo constrangimento por aquela situação.

Não conheci os fatos (claro que não falava, pensava, pois falar não parecia adequado naquele momento). Fui posterior aos eventos e ainda assim os comentava, zombava deles, tecia opiniões. Achava-me entendida no que não vivenciei. Podia, então, puxar a língua para sair desse embaraço, mas isto poderia causar algum transtorno, como manchas difíceis no seu vestido (se bem que, de imediato, isso não conseguia alcançar: caso conseguisse puxá-la, a língua presa ao teto teria tanta utilidade quanto solta pelo espaço).

Só pude ouvir um lado, uma versão dos episódios. Inspirada por eles, por estes comentários espalhafatosos, subvertidos, hiperbólicos, fúteis e ardilosos, estas falas pernósticas e parciais, cheios de rancor e melancolia, achei-me conhecedora de toda psicologia e toda História.

E foi assim, presa ao teto, que Letícia compreendeu a multiplicidade do mundo. Não dá para atingir o que, sem mim, já se passou, e não posso me achar sábia pelo que apenas ouvi (Ela se sentia muito inteligente pela descoberta; contudo, continuava com sua língua apreendida ao telhado).

E não caia sangue em parte alguma...

E foi pela manhã que acordou enfim em sua cama, e, embora para infelicidade de alguns, com a língua guardada dentro de sua própria boca.

sábado, 4 de agosto de 2007

Tetralogia do Assassinato: O Interruptor

Há uma coisa que acho bem bacana. Sofisticado. Interruptores. Um simples toque para tornar a escuridão em uma luz majestosa ou aconchegante.
Considere um homem que esteve por muito tempo preso no escuro. Ele tateia as paredes. Encontra um interruptor e... Voilá. Fica cego por um instante com a nova claridade. E, acesa por outra pessoa, isto pode muito bem ser feito de sacanagem. O homem que esperava o trovão ou esfregava pauzinhos para conseguir um pouco de fogo, luz, olhando as estrelas já sonhava com interruptores. Tiffi. Basta um clique.
Dá muito mais trabalho quando você decide se envolver assim com a outra pessoa. A conheci num bar perto do cinema. Basta um olhar de Jhonny Deep e uns dez minutos de Fred Astaire. Ela é bem bonita. Jogada assim na cama. Mas mora sozinha, nesse apartamento. Me disse que seu James Bond favorito era o Roger Moore. Disse que o meu também. Menti.
- Cena de beijo?
- A Um Passo da Eternidade. E você?
- Um Corpo que Cai, do Hitchcock.
Estou sentado ao lado do interruptor que abaixo delicadamente, brincando. Um botão bem leve e pequenino pode ser levantado e abaixado com sutileza e o corpo lindo e lívido na cama é visto afundando na penumbra, sumindo na escuridão para, depois, ressurgir na claridade.
Quando diminuo a luz a última parte que vejo evanescer são seus pés. Pequenos e brancos. Dá muito mais trabalho. Arrancar as unhas, limpar cada coisa que tocou, procurar fios de cabelo. Excluir toda intimidade que tivemos.
Um dedo aciona um botão para cima ou para baixo e o que antes era invisível, inexistente. Agora pode ser visto. Começa a ser. É isso que faço agora. Não necessariamente pela brincadeira. É muito mais pela espera. Titubeio entre ficar aqui e deixar que me descubram ou descer as escadas e ganhar a rua. A primeira opção é algo que jamais experimentei. Já conheci todas as diversas formas de matar: pessoas conhecidas, desconhecidas (como esta), devagar, rápido, com e sem contato.
Eu tenho uma teoria: a vida é uma dádiva única e cada evento que ela puder nos dar deve ser experimentado. E é isso que busco. A experiência da morte, tida uma vez apenas, não pode ser relembrada, revisitada, não sabemos nem se poderemos apreciá-la plenamente quando se apresentar a nós. Não deveríamos passar. pela vida com tanta displicência. Inevitavelmente, não teremos outra. Decidi saboreá-la com todos os detalhes que ela me dá, no máximo de possibilidades que ela permite. E a morte de outro, o assassinato, é uma delas. Responder aos instintos e aos desejos, como crianças. Com egoísmo e inteligência.
Vi a garota sozinha no bar, conversamos sobre filmes e ela ria com tanta facilidade. Curvava a cabeça e ficava fazendo bolinhas no dedo com a borda do vestido. Não devia ter tomado tantos martinis. Gosto de senti com precisão o que faço, cada prazer e toque que recebo, sem a interferência de nenhuma estupefaciente. Quando saímos, me ofereci para ir com ela até seu apartamento. Sorriu, assentindo.
Me convidou para subir e continuamos conversando. Falávamos essencialmente sobre cinema.
Sabe aqueles filmes em que um cara vai casar em uma semana e uma garota está noiva de algum outro cara, mas eles se gostam apesar do compromisso com outras pessoas? No final, eles ficam juntos. Ninguém lembra dos abandonados. Porque somos egoístas, perversos, como crianças. Naturalmente, nossa própria vida é nossa óbvia prioridade. E por isso que não há maldade no que faço. Encerrar uma existência é. para mim. provar mais um pedaço de viver. Queria poder não deixar escapar nada. E sentir tudo de bom que ela tenha para mim.
Ela trouxe um cobertor delicioso para o sofá e pôs Jules e Jim para assistirmos. Nos acariciávamos. deixando o filme como um elemento superficial sem muito interesse. Foi maravilhoso. Todas as sensações que tive. Seus sorrisos. Começamos a transar e eu apertei seu pescoço com suavidade. Sem sair dela, levei seu corpo pequeno até a cama. Passava a mão no meu rosto com tanta beleza. Sufoquei-a com força e ela ainda sorria. Depois, seu rosto preso num espasmo de medo e prazer. O prazer imenso que ninguém deve deixar de experimentar.
Apago a luz novamente e hesito em frente dela.
Coisa incrível os interruptores.

terça-feira, 24 de julho de 2007

Nota de Falecimento

Morre Augusto B. Silva
De um ataque fulminante no único coração que tinha
Deixa mulher, filhos, religião
E uma pequena propriedade na Rua B, 325.

sábado, 14 de julho de 2007

Cidade

Dois homens conversam em um bar na praça da matriz. Demófilo, um viajante de passagem pela cidade, jovial e contente. Filócrito, um morador da cidade, contente e cínico.

Demófilo: O que mais gosto nessa cidade é sua natureza explícita. Gosto como tudo aqui é escancarado e óbvio. O som é alto; as prostitutas bem expostas em momentos exatos do dia e da noite; a moral, o imoral e o amoral têm a mesma notoriedade, sem nenhum confronto típico de elementos subjetivos; os pedintes bem postos em cada esquina; o capital nítido e gritante correndo a toda pela cidade inteira. Nada aqui é tímido!

Filócrito: Não entendo o que você diz. Realmente pensa assim? Eu, particularmente, discordo. Essa é a cidade mais omissa, acanhada, distraída e cheia de vergonha que já pude conhecer. Sinceramente não entendo do que fala... Essa cerveja se expressa melhor que você.

Filócrito sorriu.

Demófilo: Claro que é como eu disse. Só estou aqui há três dias e só precisei de um curto passeio no primeiro para perceber a cidade por completo. Escancarada como uma puta sem calcinha e carente e suplicante na praça principal.

Filócrito: Talvez por isso que ela seja tão entediada. Em um dia já se vê e explora todas as suas possibilidades, não deixando nada além do enfado. Mas, não, não, veja bem, essa visão que teve é meramente superficial. Discordo de você. Encoste na mulher sem calcinha na praça pública e ela vai te responder com uma bofetada por ter confundido uma mulher de respeito com uma puta. Esta cidade pode até ser uma puta, mas aos olhos de todos - dela mesma - é uma mocinha acanhada tentando vencer em um mundo patriarcalista. Nunca vi lugar mais omisso e cheio de constrangimento do que este. Aqui nada é explícito. A cidade se deixa constantemente imperceptível e, não raro, se mente, maquiada.

Demófilo: Mas claro que não. Isto que diz é impossível. Este é um lugar comercial: e para vender é preciso chamar atenção. É só olhar esta praça para perceber tudo: o bulício das evidências não se esconde nem se camufla, explode. E tudo se mistura, bolando no mesmo quadro - gritante aos olhos - todos os elementos. Já que é para demonstrar que tudo aqui é proeminente, vamos olhar logo os menos visíveis. Preste atenção em todos os marginais por aqui: mendigos, beberrões, prostitutas e semiprostitutas, pessoas feias...

As garrafas de cerveja vão simpaticamente se multiplicando. A fala de um vira intervalo para o gole do outro...

Filócrito: Muito bem... Vamos olhar esta praça. Veja aqueles pedintes perto da igreja. Todos que passam por eles sequer os notam. Eles estão ali, algumas pessoas podem até atingi-los com seus olhos, mas isso não quer dizer que os vejam. Às vezes puxam a barra da calça ou da saia de alguém e tudo que recebem como resposta a uma impertinência dessas são passos que prosseguem como se nada houvesse acontecido. Veja as prostitutas que começam a sair dos hoteizinhos daqui. Ainda é cedo: cinco da tarde. E, mesmo assim, nem as passantes mais puritanas percebem que elas já estão na rua, que já querem alguém que possa lhes pagar a vida ou ao menos a noite. E preste bem atenção que um dos pedintes é aleijado: um pobre mutilado sem uma das pernas. Ou seja, até o grotesco se tornou superficial para nós desta cidade. Tudo é banal, ninguém liga.

Demófilo: Ora, Filócrito, o fato de que todos os passantes não observem ao seu derredor não significa que as coisas não estejam explícitas.

Filócrito: como uma coisa pode ser explícita, se invisível a todos os olhos?

Demófilo: A visibilidade das coisas está nelas, não no observador. Ah, Filócrito, você é muito cabeça dura. Veja só, está claro, nós que paramos só um minuto para discutir o assunto já conseguimos perceber tudo. As coisas estão aí, às claras; se não vêem é porque não querem. Você falou em mutilados. Outro dia, aqui, eu estava indo pegar um ônibus e tinha essa garota de cadeira de rodas sendo erguida pra entrar no ônibus. E eu a achei linda, cara. Muito linda e desejável, e eu sabia que aqui eu podia sentir qualquer coisa por ela, que eu podia achá-la bela e fascinante apesar de tudo, porque essa cidade simplesmente não esconde nada, o que te permite sentir tudo.

Filócrito: Porra, isso é conversa para se puxar numa tarde de bebidas num lugar feio como esse?! Cala a boca, veja as besteiras que já está dizendo. Como, numa cidade retardatária, provinciana e desgostosamente prepotente uma coisa como essa seria permitido? Você está doido, amigo.

Demófilo: Ah, tudo bem. Vamos mudar de assunto. Não dá pra discutir isso com você. Você é muito cabeça dura e perdeu a idéia das gratificações de morar numa cidade promissora como esta. Virou um desiludido.

A conversa se excitava, mas também já estava chateando. Dava para ver em ambos que queriam acabar logo com ela.

Filócrito: Quer saber de uma coisa, Demófilo! Você está doido porque está apaixonado por essa cidadezinha de nada. Sabe quando a gente transa com qualquer pessoa e fica aquele gosto estranho de terra na boca?... É a mesma coisa essa cidade; ela pode até te dar um ou dois orgasmos na vida, mas vai ficar é sempre esse gosto de terra e merda em sua boca. Fique por aqui algum tempo, e você vai ver.

segunda-feira, 9 de julho de 2007

pois bem...

o espaço é para textos meus e da calina - e de alguns outros bons escritores que gostamos.
às vezes escritos de um, às vezes escritos do outro. Alguns dias, dos dois.

Estamos trabalhando, junto com um amigo, numa história sobre um trio de jovens franceses que tentam reencontrar a França de seus pais na França pós-segunda guerra.
É divertido escrever com ela.
Contudo, acho que aqui não será sobre isso.

Enquanto não quero digitar antigos manuscritos ou escrever algo realmente custoso, vai algo ao deus-dará, à última hora, algo daquele tempo preguiçoso das três horas da manhã a se ir dormir:
Poemeto Inventivo

"eu quem inventei o mundo.
inventei a criança:
a titubear entre a boneca e o velotrol.
inventei o medo,
que é pra não ficar tudo sem graça.
inventei a vida como é e o sonho,
que é como quer que se seja.
e inventei o amor para que se completem e se atrapalhem os humanos.
inventei tudo que vive e tudo que se há de inventar.

tá bom, é mentira."

sábado, 7 de julho de 2007

Monólogo Coletivo

Só nos concerne nosso corpo
E a esperança de que possam usá-lo.
Tudo definha e morre
E se apresenta como uma nova visão
Do que um dia perdemos.

Desistimos de amanhãs que encantam
Para nos perdermos num presente-contínuo desiludido
Sem altruísmos nem utopias.
Somos vácuos de espíritos abortados.

A pantera sutilmente devorou nossa consciência
Deixando-a cheia de tolos saberes
Com larvas gosmentas de pretensão.
Há professores de matemática, História, química, física, biologia...
Compartilhando um universo completamente reduzido e desinteressante.

Nossos pais nos construiram,
Mas não carregamos deles nenhuma marca.
A memória se dissipou na inevitabilidade da morte.
Nossos corpos circulam sem perspectiva de vida,
Carregando pesares ressequidos.
- Eis os vazios-distraídos-existentes.

Símios semimoribundos que se desfazem progressivamente,
Cuja desilusão não combina com suas roupas.

É preciso ser vívido
O simples se tornou obsoleto.
O cotidiano não ensina nada.
Lembra-te
De quando trocamos nossos rostos por aquele lenço amarelo?
Era a única oferta que tínhamos, não a melhor.

A solidão individual
É a similaridade do coletivo.
As idiossincrasias são todas as mesmas em todas as mentes.