terça-feira, 24 de julho de 2007

Nota de Falecimento

Morre Augusto B. Silva
De um ataque fulminante no único coração que tinha
Deixa mulher, filhos, religião
E uma pequena propriedade na Rua B, 325.

sábado, 14 de julho de 2007

Cidade

Dois homens conversam em um bar na praça da matriz. Demófilo, um viajante de passagem pela cidade, jovial e contente. Filócrito, um morador da cidade, contente e cínico.

Demófilo: O que mais gosto nessa cidade é sua natureza explícita. Gosto como tudo aqui é escancarado e óbvio. O som é alto; as prostitutas bem expostas em momentos exatos do dia e da noite; a moral, o imoral e o amoral têm a mesma notoriedade, sem nenhum confronto típico de elementos subjetivos; os pedintes bem postos em cada esquina; o capital nítido e gritante correndo a toda pela cidade inteira. Nada aqui é tímido!

Filócrito: Não entendo o que você diz. Realmente pensa assim? Eu, particularmente, discordo. Essa é a cidade mais omissa, acanhada, distraída e cheia de vergonha que já pude conhecer. Sinceramente não entendo do que fala... Essa cerveja se expressa melhor que você.

Filócrito sorriu.

Demófilo: Claro que é como eu disse. Só estou aqui há três dias e só precisei de um curto passeio no primeiro para perceber a cidade por completo. Escancarada como uma puta sem calcinha e carente e suplicante na praça principal.

Filócrito: Talvez por isso que ela seja tão entediada. Em um dia já se vê e explora todas as suas possibilidades, não deixando nada além do enfado. Mas, não, não, veja bem, essa visão que teve é meramente superficial. Discordo de você. Encoste na mulher sem calcinha na praça pública e ela vai te responder com uma bofetada por ter confundido uma mulher de respeito com uma puta. Esta cidade pode até ser uma puta, mas aos olhos de todos - dela mesma - é uma mocinha acanhada tentando vencer em um mundo patriarcalista. Nunca vi lugar mais omisso e cheio de constrangimento do que este. Aqui nada é explícito. A cidade se deixa constantemente imperceptível e, não raro, se mente, maquiada.

Demófilo: Mas claro que não. Isto que diz é impossível. Este é um lugar comercial: e para vender é preciso chamar atenção. É só olhar esta praça para perceber tudo: o bulício das evidências não se esconde nem se camufla, explode. E tudo se mistura, bolando no mesmo quadro - gritante aos olhos - todos os elementos. Já que é para demonstrar que tudo aqui é proeminente, vamos olhar logo os menos visíveis. Preste atenção em todos os marginais por aqui: mendigos, beberrões, prostitutas e semiprostitutas, pessoas feias...

As garrafas de cerveja vão simpaticamente se multiplicando. A fala de um vira intervalo para o gole do outro...

Filócrito: Muito bem... Vamos olhar esta praça. Veja aqueles pedintes perto da igreja. Todos que passam por eles sequer os notam. Eles estão ali, algumas pessoas podem até atingi-los com seus olhos, mas isso não quer dizer que os vejam. Às vezes puxam a barra da calça ou da saia de alguém e tudo que recebem como resposta a uma impertinência dessas são passos que prosseguem como se nada houvesse acontecido. Veja as prostitutas que começam a sair dos hoteizinhos daqui. Ainda é cedo: cinco da tarde. E, mesmo assim, nem as passantes mais puritanas percebem que elas já estão na rua, que já querem alguém que possa lhes pagar a vida ou ao menos a noite. E preste bem atenção que um dos pedintes é aleijado: um pobre mutilado sem uma das pernas. Ou seja, até o grotesco se tornou superficial para nós desta cidade. Tudo é banal, ninguém liga.

Demófilo: Ora, Filócrito, o fato de que todos os passantes não observem ao seu derredor não significa que as coisas não estejam explícitas.

Filócrito: como uma coisa pode ser explícita, se invisível a todos os olhos?

Demófilo: A visibilidade das coisas está nelas, não no observador. Ah, Filócrito, você é muito cabeça dura. Veja só, está claro, nós que paramos só um minuto para discutir o assunto já conseguimos perceber tudo. As coisas estão aí, às claras; se não vêem é porque não querem. Você falou em mutilados. Outro dia, aqui, eu estava indo pegar um ônibus e tinha essa garota de cadeira de rodas sendo erguida pra entrar no ônibus. E eu a achei linda, cara. Muito linda e desejável, e eu sabia que aqui eu podia sentir qualquer coisa por ela, que eu podia achá-la bela e fascinante apesar de tudo, porque essa cidade simplesmente não esconde nada, o que te permite sentir tudo.

Filócrito: Porra, isso é conversa para se puxar numa tarde de bebidas num lugar feio como esse?! Cala a boca, veja as besteiras que já está dizendo. Como, numa cidade retardatária, provinciana e desgostosamente prepotente uma coisa como essa seria permitido? Você está doido, amigo.

Demófilo: Ah, tudo bem. Vamos mudar de assunto. Não dá pra discutir isso com você. Você é muito cabeça dura e perdeu a idéia das gratificações de morar numa cidade promissora como esta. Virou um desiludido.

A conversa se excitava, mas também já estava chateando. Dava para ver em ambos que queriam acabar logo com ela.

Filócrito: Quer saber de uma coisa, Demófilo! Você está doido porque está apaixonado por essa cidadezinha de nada. Sabe quando a gente transa com qualquer pessoa e fica aquele gosto estranho de terra na boca?... É a mesma coisa essa cidade; ela pode até te dar um ou dois orgasmos na vida, mas vai ficar é sempre esse gosto de terra e merda em sua boca. Fique por aqui algum tempo, e você vai ver.

segunda-feira, 9 de julho de 2007

pois bem...

o espaço é para textos meus e da calina - e de alguns outros bons escritores que gostamos.
às vezes escritos de um, às vezes escritos do outro. Alguns dias, dos dois.

Estamos trabalhando, junto com um amigo, numa história sobre um trio de jovens franceses que tentam reencontrar a França de seus pais na França pós-segunda guerra.
É divertido escrever com ela.
Contudo, acho que aqui não será sobre isso.

Enquanto não quero digitar antigos manuscritos ou escrever algo realmente custoso, vai algo ao deus-dará, à última hora, algo daquele tempo preguiçoso das três horas da manhã a se ir dormir:
Poemeto Inventivo

"eu quem inventei o mundo.
inventei a criança:
a titubear entre a boneca e o velotrol.
inventei o medo,
que é pra não ficar tudo sem graça.
inventei a vida como é e o sonho,
que é como quer que se seja.
e inventei o amor para que se completem e se atrapalhem os humanos.
inventei tudo que vive e tudo que se há de inventar.

tá bom, é mentira."

sábado, 7 de julho de 2007

Monólogo Coletivo

Só nos concerne nosso corpo
E a esperança de que possam usá-lo.
Tudo definha e morre
E se apresenta como uma nova visão
Do que um dia perdemos.

Desistimos de amanhãs que encantam
Para nos perdermos num presente-contínuo desiludido
Sem altruísmos nem utopias.
Somos vácuos de espíritos abortados.

A pantera sutilmente devorou nossa consciência
Deixando-a cheia de tolos saberes
Com larvas gosmentas de pretensão.
Há professores de matemática, História, química, física, biologia...
Compartilhando um universo completamente reduzido e desinteressante.

Nossos pais nos construiram,
Mas não carregamos deles nenhuma marca.
A memória se dissipou na inevitabilidade da morte.
Nossos corpos circulam sem perspectiva de vida,
Carregando pesares ressequidos.
- Eis os vazios-distraídos-existentes.

Símios semimoribundos que se desfazem progressivamente,
Cuja desilusão não combina com suas roupas.

É preciso ser vívido
O simples se tornou obsoleto.
O cotidiano não ensina nada.
Lembra-te
De quando trocamos nossos rostos por aquele lenço amarelo?
Era a única oferta que tínhamos, não a melhor.

A solidão individual
É a similaridade do coletivo.
As idiossincrasias são todas as mesmas em todas as mentes.