sábado, 19 de julho de 2008

Trilogia dos Tempos Históricos: Futuro

O Vendedor do Mar

Pelo tempo de meu nascimento, havia na província um velho homem que, perambulando de aldeia em aldeia, anunciava a todos os ares ser ele o vendedor do mar. Talvez por jamais haver encontrado ninguém digno ou rico o suficiente para pagar pelo excelente produto, habituei-me desde pequeno a vê-lo passar de tempos em tempos, carregando sempre o mesmo discurso, trazendo sempre, da boca aos ventos, a maravilha da sua oferta.

Precisamente no dia do meu aniversário de dez anos, enquanto brincávamos eu e meus amigos nas colinas altas, eis que o ouço dizer pela primeira vez o valor que desejava obter pelo mar. Era uma soma vultosa! Considerando, todavia, a extensão do objeto, impossível haver preço mais exatamente justo.

Embora não houvesse ali ninguém além de nós, crianças incompletas, vendo o velho homem bradar acerca do mar àqueles que desejassem alcançá-lo, por incalculável quantia e extrema honradez, pareceu-me que aquilo fora dito tão somente a mim – e talvez fosse eu, dentre todos os presentes, seu único ouvinte. Sabia que, no final, sem falta, se eu o merecesse, tomaria das mãos do homem o mar, que mo daria de bom grado, pelo preço justo. Sentia como se suas Palavras fossem dirigidas exclusivamente a mim, trazidas pela mesma brisa que agitava as ondas.

Assim, a partir daí, sempre que avistava o mar, do alto das colinas, sempre que nele me banhava ou sobre ele navegava nos pequenos barcos pesqueiros, sempre que avistava as ondas assombrosas e altivas rebentarem-se na areia diante dos meus pés, sempre que degustava um saboroso peixe ou fruto do mar – que rapidamente se tornaram meus alimentos favoritos -, invadia-me a ânsia pelo dia em que tudo aquilo poderia ser chamado claramente de meu; agitava-se em mim a firmeza da necessidade de diversas obrigações que deveria me impor se quisesse receber, das mãos do vendedor do mar, a posse daquela existência. Cresci então fascinado por aquela oferta; ansioso para tomar sobre mim os encargos dessa fantástica conquista.

Não tive filhos; jamais me casei; não permiti que um instante sequer me desviasse do meu projeto, ou melhor, para ser mais correto e sincero, fui aprendendo a permitir cada vez menos que eventos e distrações me desviassem deste caminho que reina sobre mim, desconhecido por todos.

Tornei-me rico e bondoso. Sei que todos me considerariam um louco se soubessem da intenção final de cada ação de toda a minha vida e que vêem em minha prosperidade o fim mesmo de meus desejos e atos. Tenho também consciência de que, caso soubessem de minhas inclinações mais íntimas sem que duvidassem da estabilidade de minha sanidade, considerariam uma loucura, isto sim, as freqüentes esmolas que distribuo caridosamente entre os pobres de nossa aldeia. A loucura fez de mim um homem bom; e isto, a eles, seria incompreensível: uma vez que aquilo que desejo é tão grande e de tão caro valor, não seriam um desperdício estes gestos filantrópicos? Contudo, estou convicto de que, para adquirir o meu sonho, terei de apresentar uma vida digna e sensata ao vendedor do mar, pois apenas uma alma nobre pode possuir algo tão imenso.

Com o tempo, tornei-me também reflexivo. Aprendi a admirar o mar, os homens, a criação e a terra, mas sobretudo o mar. Ouvi silenciosamente o homem do mar todas as vezes que por aqui ele passou, sem jamais lhe dirigir Palavra alguma. Acredito seriamente que, por não haver ninguém corajoso ou abençoado o suficiente para assumir as responsabilidades de seu pedido, eu sempre fui o único a escutá-lo.

Agora, avançado em idade e já no fim dos meus dias, como não tive filhos, não tenho dúvidas de que terei de inspirar em alguém o desejo pelo mar após minha morte, quer eu consiga ou não obtê-lo, pois, apesar de rico e bondoso, não sei se os sou o bastante aos olhos do vendedor do mar.

Quando tudo estiver então completado, quando tiver por fim em minhas mãos todo o necessário para apresentar-me a ele como um grande e sublime homem, sei que ele virá até mim, me dará o mar e tomará tudo o que tenho, legando-me o peso do que foi sua posse. Sei que ele não pode cessar sua busca. Entretanto, temo que, antes da chegada desse instante, eu já não me conte entre os vivos.