quarta-feira, 17 de setembro de 2008

A existência dos vivos enquanto mortos.

Por que motivo sombrio e sórdido teremos de permanecer nessa vida? Aliás, será que podemos chamar de vida esse definhamento? Meus únicos passatempos são ver novos tipos como eu ressurgindo a todo instante, tão freqüentemente quanto nascem os humanos, e cogitar que inspiração divina ou casual nos pôs nessa situação decrépita, nesse jogo incessante de absurdo mal gosto.

Permita-me explicar, mas sou dos que não estão vivos: zumbis, mortos-vivos, demônios, anomalias... Como queiram. Tenho certeza de que já ouviu falar de nós. Estivemos – posso usar o plural, mesmo que nessa época eu ainda não fosse um de nós – bem, estivemos nos jornais, falaram diariamente de nós e depois nos esqueceram, como pratos que perdem o sabor ou roupas que perdem o brio. Não peguei o momento de fama, a época do frisson; azar! Que me importa agora?! Agora é só o tédio, como em todas as existências.

Contento-me, nestes momentos de ócio, ou seja, quase o tempo todo, em escrever, catalogar e divagar. Coisas que fazia com freqüência antes de me enjaularem nessa decrepitude ambulante.

Há, entre nós, vários tipos:

1) Os arruaceiros: são, em geral, os que mais chamam atenção. Alguns já tem o cérebro tão avariado que nem sabem o que estão fazendo. Mas a maioria sabe muito bem o que busca. Eles se aproveitam, digamos, de sua situação invulgar e apavorante para assustar, assaltar, praticar estupros e outras violências, como crianças sem critérios. Agem como vermes asquerosos, amorais. Entretanto, são eles nossa referência, nosso cartão de visita. A maioria dos vivos não pensam em nós senão nestes termos.

2) Em segundo lugar existem os normais. Embora estigmatizados pelo exibicionismo dos arruaceiros, estes são a maior parte de nós: pacatos, tristes, entediados, exasperados pela incessante surpresa da nova situação... Jamais conseguem sair deste torpor, coitados. O momento de êxtase e o choque da descoberta causam-nos uma paralisia agitada, convulsa, delirante... Não conseguimos reconhecer quem somos e porque estamos dessa forma... Vivos, embora mortos. É a mais aterradora das experiências! Ninguém que já tenha passado por isso sabe explicar a sensação. Os normais jamais conseguem superar esse estado de paralisia; sobrevivem numa inércia cerebralmente agitada e incrédula até o fim. Parece-me que suas novas existências não passam apenas de um prolongamento de suas existências anteriores como humanos: melancólicos e apáticos.

3) Por fim, em minha lista, temos os inconformados iludidos... Ah, quão irônicos eles são! Querem acreditar que ainda têm vida; lutam para prosseguir nessa existência sem sentido, para amenizar e retardar essa decadência. Alguns são ilustres; Tiveram anteriormente uma vida de intelectuais, tal qual eu. Aparecem hoje na TV bradando sobre “nossa causa”. Pedem respeito, tolerância. Para quê?

Claro que essas categorias são apenas uma catalogação sistemática e ideal da minha mente. Em realidade, um arruaceiro sempre pode substituir um dia de bagunça por um pouco de reflexão e um intelectual pode chegar a um ponto de loucura tal que o leve a agir como um delinqüente.

Sim, pois definhamos. Nossa nova ¨vida” é quase que praticamente apenas isso. Precisamos do nosso cérebro para raciocinar, mas nosso coração não bate; gostamos de nossas bocas para engolir coisas, mas não muitos de nós nem língua possuem mais; não sentimos sabor algum, porém gostamos de fazer tudo que nos traga a recordação dos sabores perdidos. Essa é a constatação mais certa acerca de nós.

Permitam-me explicar melhor. Nossos corpos de defuntos continuam em seu processo de putrefação, contudo, de uma forma muito mais lenta. Essa decomposição demora em média de 5 a 7 meses e conseguimos utilizar nossos corpos até certo ponto. Os que conseguem atingir a velhice e a maturidade do post-mortem estão tão decompostos, toscos e suas carnes tão dilaceradas que já não conseguem fazer nada, nem mesmo morrer, desfazer-se, matar-se(alguns pela segunda vez), sonho de muitos. E o pior: seus cérebros já foram reduzidos pelos vermes a um estado de completa inutilidade. Sobrevivem, débeis. Nessa fase, busca-se a morte avidamente – os desolados mais jovens na nova existência, por sorte e também coragem, ainda conseguem desfazer-se.

Depois de alguns meses, simplesmente se apodrece e não se serve mais para nada, como tudo que existe. Somos imortais? O que sei é que somos finitos, e inúteis nessa finitude.

Morremos primeiramente como humanos. A maior parte de nós, antes da ressurreição, chega a ser enterrada, lacrada em nossas caixas sempiternas. È certo que temos rareado, pois o Estado agora quer criar uma lei que obriga todas as famílias a cremarem seus mortos, e muitos, por temor, já seguem essa idéia. Todavia, uma hora, ao meio dia ou à noite, nos damos conta de que ainda estamos vivos e tentamos andar, sair. Debatemo-nos, arranhamo-nos, por algum milagre, escavamos a terra em direção à luz. Eu já vivi essa experiência. Levantei o meu rosto da terra e vi as inúmeras lápides ao meu redor. Os mármores e seus epitáfios se tornaram mordazes diante dos meus olhos que, com esforço, retornavam a ver. Eu sabia o que estava acontecendo. Senti uma fúria e um desconforto imenso por aquela injustiça. Olhei ao redor. Outros olhares aterrados, sujos de terra e lama, eram lançados aos céus, ao chão. Via-se a loucura nos olhos dos novos vivos. O sentimento de desterro invertido, o desespero causado pela reconciliação não almejada. Naquela noite, vi a raiva, a ira, a dor, a confusão e a insanidade. Era um lugar infeliz aquele, como infelizes eram aquelas ressurreições.

Por vezes e vezes voltei ao cemitério para ver os novos ressurretos. São sempre os mesmos olhares, fazendo-me recordar da noite do meu próprio retorno. Por vezes, vejo saindo de sua catacumba alguém que, como humano, fora mutilado. É preciso ter força e vontade para sair de sob o solo. Seres sem pernas que se rastejam, sem olhos, alguns amputados em uma orelha, algumas mãos com um ou dois dedos ausentes emergem de sob o solo ao solo, ao sol... Nunca vi nenhum sem braço conseguir emergir, e já imagino por quê.

Um prazer indescritível percorre o meu corpo nessas ocasiões. Sou um homem quase feliz diante desse divertimento. Sinto espasmos de riso e torno-me quase humano em meu prazer e sadismo.

Mas agora eu preciso ir. Abandonarei esses papéis. Meu amigos chegam e nós precisamos espalhar um pouco de terror entre os vivos odiosos; saquear e ferir. Teremos uma noite de formidável violência. Afinal, pouco tempo me resta ainda e é preciso viver. É preciso viver a todo custo, ó, meus irmãos.

Um comentário:

Rafaela disse...

ele está vivo porque ainda não apareceu no caminho de Jack Bauer.