___Todos seguiam normas bem sólidas em todos os quartos da pensão de três andares da Rua Santa Cecília, nº 12. Mas eram ainda mais consistentes as normas que regiam as vidas de cada um dos moradores dos dois únicos quartos do primeiro andar. Moravam ali há muito tempo o Sr. Esaú e o Sr. Jacob. Embora vizinhos, toda ligação que possuíam era composta pelos jogos de cartas nas quintas à noite, algumas Palavras sem substância balbuciadas quando se encontravam na porta ou na escada, e uma habitual troca de alimentos quando necessário. Mesmo nas noites de jogo, sempre preferiam se trancar num concentrado laconismo. Falavam pouco mas jogavam muito bem: e assim uma noite na semana desaparecia rápido e fazia um pouco de sentido.
A amizade corria tranquilamente, pois era sustentada em tais obrigações sólidas, mas completamente leves, como arrumar bem as cartas e a mesa depois de cada partida. E a mais necessária era que não se perguntasse nunca como o Sr. Jacob conseguira a contundente e hedionda cicatriz que lhe enfeitava o rosto. Isto, com o tempo e a freqüência da visão daquele rosto talhado da bochecha ao alto do olho direito, foi ganhando cada vez menos importância. Certamente, no princípio Esaú se sentira curioso em saber como o amigo adquirira aquela marca, mas ainda não se sentia suficientemente íntimo para perguntar. Quando já se acreditava assim, simplesmente não se interessava mais por isso. Agora não se lembrava mesmo de jamais haver tido qualquer interesse pela cicatriz, como também não se lembrava sempre do aluguel e de outras coisas. E nada disso realmente importava para ele, desde que se jogasse cada partida com sagacidade e vigilância.
Diz-se por aí que, certa vez, quando ainda era novato na pensão, a senhoria insinuou perguntar ao Sr. Jacob sobre a cicatriz... E ele se tornou tão horrivelmente irritado nesta ocasião que substituiu seu habitual mutismo por um jogo de Palavras sussurradas, mas perfeitamente audíveis, cheias de imprecações contra todos os que passavam por perto; um jogo de murmúrios que durou todo o dia. Nunca mais se pensou em perguntar nada daquilo; e o Sr. Esaú fora avisado sobre isso logo nas primeiras semanas em que se alojou na casa.
A senhoria, uma mulher robusta e esperta, morava em todo o último andar com seus quatro filhos (que pareciam incontáveis quando começavam a correr pelo prédio). No andar térreo, ao lado do portão da escada, possuía um bar que administrava detrás do balcão em praticamente todas as horas do dia, deixando as crianças livres em suas brincadeiras. O Sr. Esaú as tolerava e Jacob simplesmente se esquivava delas.
Certo dia, porém, ainda em suas primeiras horas, aconteceu que a chuva correu por toda a cidade, e não permitiu, com suas ruas alagadas e problemas estruturais, que nenhum dos dois alcançasse seu trabalho. O Sr. Jacob ligou do telefone do bar para a marcenaria onde trabalhava, e pode perceber pela voz do patrão que ele calculava pela última vez quanto perderia num dia em que todos faltaram por causa da maldita chuva. O Sr. Esaú ligou para a loja de tapetes, onde sabia que era mantido apenas por piedade, mas ninguém atendeu. Estavam os dois a poucos anos da mirrada aposentadoria.
Naquele dia, decidiram ficar estendidos na mesa do bar e beber um pouco. Pediram cerveja e dois copos. Apesar da bebida, suas línguas não se tornavam mais soltas. Sob o toldo da frente e o teto um bom número de pessoas tentava se proteger do ameaçador e inconveniente temporal. O bar nunca esteve tão cheio! Um grupo de estudantes entrou e atraiu a atenção dos dois; olhando para elas, os velhos murchos e invejosos aparentaram cobiça pelos anos longínquos da juventude. Mas, ao voltarem o olhar para seus copos, enrubesceram, e se tornaram ainda mais silenciosos e melancólicos.
Duas das crianças da senhoria brincavam entre os encharcados visitantes inesperados. Pela primeira vez o bar fervilhava. A senhoria passou um pano vermelho e velho sobre a mesa onde eles estavam, colocou os copos e disse:
- Será uma pena quando tiver que colocar toda essa gente para fora. Mas vai ter que ser assim ou daqui a pouco a água inunda toda a casa e vamos ter que nadar até nossos quartos.
Ela se achou engraçada, mas os homens ouviram quietos.
O Sr. Jacob saiu dizendo que em breve voltaria para uma partida. Passadas as primeiras horas da manhã, em que os mais medrosos e os mais afoitos se arriscavam a sair de casa, Esaú via as ruas desertas onde parecia correr um rio sobre o asfalto e pensou então que aquelas construções à frente voltariam a um estado anterior, quando não existiam e tudo era verdadeiramente deserto. Pensou que a água e o vento arrastariam telhados naquela noite, arrastariam muros e sufocariam casas com terras que desabam; os navios vacilariam no mar, e, no campo, árvores seriam lançadas ao chão e raios matariam alguém.
Perdido nesses devaneios, como o outro não retornava e para se desvencilhar do marasmo satisfatório e entristecedor em que se lançava, decidiu ele mesmo subir as escadas e ir começar o jogo. No espaço sob os degraus, ao qual chavamam com cortesia de armário, encontrou cabisbaixo o garoto mais velho, que era geralmente o mentor das brincadeiras dos irmãos, mas, segundo refletiu, não devia estar gostando daquele dia de chuva barrenta e incômoda.
Quando bateu à porta, ouviu com surpresa a voz bêbada do outro lado.
- Entre.
Jacob estava visível e transtornadamente embriagado. Contudo, seus gestos ainda eram calmos e conscientes. Indicou uma das cadeiras para que Esaú se sentasse.
- O que você quer eu sei. Eu sei o que você veio descobrir aqui em cima. Estão todos me devorando constantemente para que conte a história da minha cicatriz. Todos me olham sedentos para sugar minha vida. Basta pedir que eu te conto, ora. A você eu conto, pois é quase tão miserável quanto eu.
Sinceramente, Esaú estava contente em ver Jacob daquele jeito. Teria enfim o que lhe entreter naquele dia vazio. Sim, a chuva caia sobre toda a cidade, sem que nenhum jornal a houvesse anunciado previamente. Disse que sim, que sempre quis ouvir a história da marca, embora isso nem lhe passasse pela cabeça no momento. Gostaria era de saber como o amigo se embebedara daquela forma. Disse isto para poder se distrair: sim, quero ouvir a história sobre a cicatriz. Ficou contente pela situação do outro e pela distração inesperada. Sorriu.
Sentado sobre a cama com os olhos enormes, Jacob parecia mais sóbrio. Suspirou e começou sua história com voz firme.
“Eu ainda era muito pequeno quando os dois garotos de minha rua sumiram repentinamente. Não podíamos nos afastar para muito longe de nossas casas e devíamos sempre andar em grupo na volta da escola. Vivíamos sem poder correr dos olhares atentos de nossas mães.
“Ninguém sabia ainda o que tinha acontecido: nossas mães diziam coisas terríveis para nos assustar e nos manter na linha e davam consolos animadores e prósperos umas para as outras, principalmente para as mães dos garotos desaparecidos.
“Mas éramos crianças e não tínhamos os mínimos interesses nessas cautelas. Às vezes tínhamos mesmo invejas dessas crianças perdidas que podiam estar se divertindo bem mais do que a gente, num lugar sem preocupação e vigilância.
“Sei que desconfiavam de um homem que morava no fim de nossa rua, embora fosse muito pequeno naquele tempo. Entendia isso das frases baixas e entrecortadas que elas me deixavam ouvir. Só não sabia bem do que desconfiavam. Trabalhava em uma fábrica de alumínio e as mulheres suspeitavam dele porque era sério e não costumava conversar com os vizinhos, ao contrário de seus maridos e amantes beberrões cheios de piadas e gracejos imbecis o tempo todo.”
A voz de Jacob alteava-se e Esaú pedia que falasse mais baixo, não para acalmá-lo, mas para que pudesse saborear melhor a história. Se ele narrasse mais lentamente, podia perceber melhor em seu rosto o transtorno e as rugas que a história trazia à tona.
“Um dia, consegui escapar com um amigo das atenções de minha mãe e fomos brincar num riacho ao lado da minha rua. Sabia que ali não seria pego e que, caso acontecesse algo, eu poderia correr e, subindo por um caminho que julgava desconhecido por todos, rapidamente voltar para minha rua em menos de um minuto.
“Crianças nunca imaginam que seus caminhos secretos são, na verdade, caminhos que todos sabem onde estão e como chegar neles.
“Qual não foi minha surpresa quando vi atrás de nós um homem de expressão contumaz e sorriso atraente. Ele perguntou se nossas mães sabiam que estávamos ali e, claro, nós mentimos. ‘Sim, senhor. Elas sabem’. Sentou-se ao nosso lado e disse que podíamos continuar brincando, que não queria nos atrapalhar em nada. Apenas ficar nos observando brincar, era tudo o que queria. Eu devia ter menos de 8 anos naquela época, entende, Esaú? Bem menos de 8 anos.
“Tirou um pião do bolso e disse que poderia nos ensinar a melhor maneira e mais divertida de rodar o pião e empinar pipas. Ensinou-nos também a fazer brincadeiras com nossas sombras em posições engraçadas, enquanto contava histórias hilárias que nos faziam rir. Ele conhecia todas as histórias e imitava mil vozes. Ao terminar toda aquela encenação juvenil, que muito nos agradou, despediu-se e caminhou até o alto do barranco que levava a nossa rua. Ainda ríamos, eu e meu amiguinho, quando demos tchau. Estávamos felizes por conhecer um adulto realmente divertido.
“Já no alto, ele virou a cabeça para nós e sorriu. Voltou. Disse que conhecia um lugar onde nossas sombras formariam figuras tão legais que poderíamos pegar nelas como balões.
“O curioso é que até hoje não sei o que foi feito do outro garoto. Acho que correu sorrateiramente de volta quando cruzávamos, apressados, as árvores que fechavam o caminho. Quando me dei conta, estávamos eu e o desconhecido numa casa abandonada cheia de garrafas quebradas, sacos plásticos, seringas, papelões e outros lixos.
“Eu disse a ele que naquele lugar fechado não ia haver sombra nenhuma e ele era um mentiroso. Ele sorriu para mim e, inclinando meu corpo para o chão, disse que eu veria muitas sombras, sombras que jamais havia visto. Deitou-me com um golpe e colocou aquele corpo grande contra mim. Senti-o sujo.
“eu me debatia e pedia que parasse, que saísse de cima de mim, por favor. Como resposta, pôs uma mão em minha boca e guiou a outra até minha bermuda. Tudo isso fazia com um sorriso, um riso contente, dizendo que tudo ia ficar bem. Seu corpo pesava cada vez mais sobre mim. Eu odiava muito aquele homem e sentia muito, muito medo. Senti que lágrimas começavam a tornar estrelada minha visão. Por fora de seu gigantesco corpo, consegui pegar uma garrafa em minhas mãos pequenas. Ouvi o estalido do vidro quebrando e acho que ele também ouviu. Mas, rapidamente, antes que qualquer um de nós percebesse, fiz o sangue jorrar em seu rosto. Da meia-lua vermelha que abri em sua face gotas rubras caiam em meu rosto e na sua camisa.”
No chão, Esaú quedou-se assustado e boquiaberto. Comprimiu a cabeça contra as mãos, mas os seus lábios se esforçavam em traí-lo. Havia um tremor comprimido em todos os seus gestos. Sentia sua cabeça perdida diante das Palavras que já não discernia: “batida”, “chão”, “sangue”, “fuga”. Ouvia o som da chuva.
Sim, a chuva de todos os tempos e todos os medos caia no emaranhado das últimas frases do Sr. Jacob. A chuva real escorria pelas janelas, destelharia casas e lavava todas as ruas. Limpava enfim a poeira acumulada por inúmeros dias nas bordas do vidro das janelas. Lavava as paredes e as telhas. O Sr. Jacob levantou uma última vez os olhos baixos, marejados e vermelhos, e disse:
- Pronto... Todos podem me odiar agora.
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Um comentário:
é grande, to com preguiça de ler.mas que conste que eu vim aqui, como visitante deste blog.e sei lá...é isso.
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