Dois homens conversam em um bar na praça da matriz. Demófilo, um viajante de passagem pela cidade, jovial e contente. Filócrito, um morador da cidade, contente e cínico.
Demófilo: O que mais gosto nessa cidade é sua natureza explícita. Gosto como tudo aqui é escancarado e óbvio. O som é alto; as prostitutas bem expostas em momentos exatos do dia e da noite; a moral, o imoral e o amoral têm a mesma notoriedade, sem nenhum confronto típico de elementos subjetivos; os pedintes bem postos em cada esquina; o capital nítido e gritante correndo a toda pela cidade inteira. Nada aqui é tímido!
Filócrito: Não entendo o que você diz. Realmente pensa assim? Eu, particularmente, discordo. Essa é a cidade mais omissa, acanhada, distraída e cheia de vergonha que já pude conhecer. Sinceramente não entendo do que fala... Essa cerveja se expressa melhor que você.
Filócrito sorriu.
Demófilo: Claro que é como eu disse. Só estou aqui há três dias e só precisei de um curto passeio no primeiro para perceber a cidade por completo. Escancarada como uma puta sem calcinha e carente e suplicante na praça principal.
Filócrito: Talvez por isso que ela seja tão entediada. Em um dia já se vê e explora todas as suas possibilidades, não deixando nada além do enfado. Mas, não, não, veja bem, essa visão que teve é meramente superficial. Discordo de você. Encoste na mulher sem calcinha na praça pública e ela vai te responder com uma bofetada por ter confundido uma mulher de respeito com uma puta. Esta cidade pode até ser uma puta, mas aos olhos de todos - dela mesma - é uma mocinha acanhada tentando vencer em um mundo patriarcalista. Nunca vi lugar mais omisso e cheio de constrangimento do que este. Aqui nada é explícito. A cidade se deixa constantemente imperceptível e, não raro, se mente, maquiada.
Demófilo: Mas claro que não. Isto que diz é impossível. Este é um lugar comercial: e para vender é preciso chamar atenção. É só olhar esta praça para perceber tudo: o bulício das evidências não se esconde nem se camufla, explode. E tudo se mistura, bolando no mesmo quadro - gritante aos olhos - todos os elementos. Já que é para demonstrar que tudo aqui é proeminente, vamos olhar logo os menos visíveis. Preste atenção em todos os marginais por aqui: mendigos, beberrões, prostitutas e semiprostitutas, pessoas feias...
As garrafas de cerveja vão simpaticamente se multiplicando. A fala de um vira intervalo para o gole do outro...
Filócrito: Muito bem... Vamos olhar esta praça. Veja aqueles pedintes perto da igreja. Todos que passam por eles sequer os notam. Eles estão ali, algumas pessoas podem até atingi-los com seus olhos, mas isso não quer dizer que os vejam. Às vezes puxam a barra da calça ou da saia de alguém e tudo que recebem como resposta a uma impertinência dessas são passos que prosseguem como se nada houvesse acontecido. Veja as prostitutas que começam a sair dos hoteizinhos daqui. Ainda é cedo: cinco da tarde. E, mesmo assim, nem as passantes mais puritanas percebem que elas já estão na rua, que já querem alguém que possa lhes pagar a vida ou ao menos a noite. E preste bem atenção que um dos pedintes é aleijado: um pobre mutilado sem uma das pernas. Ou seja, até o grotesco se tornou superficial para nós desta cidade. Tudo é banal, ninguém liga.
Demófilo: Ora, Filócrito, o fato de que todos os passantes não observem ao seu derredor não significa que as coisas não estejam explícitas.
Filócrito: como uma coisa pode ser explícita, se invisível a todos os olhos?
Demófilo: A visibilidade das coisas está nelas, não no observador. Ah, Filócrito, você é muito cabeça dura. Veja só, está claro, nós que paramos só um minuto para discutir o assunto já conseguimos perceber tudo. As coisas estão aí, às claras; se não vêem é porque não querem. Você falou em mutilados. Outro dia, aqui, eu estava indo pegar um ônibus e tinha essa garota de cadeira de rodas sendo erguida pra entrar no ônibus. E eu a achei linda, cara. Muito linda e desejável, e eu sabia que aqui eu podia sentir qualquer coisa por ela, que eu podia achá-la bela e fascinante apesar de tudo, porque essa cidade simplesmente não esconde nada, o que te permite sentir tudo.
Filócrito: Porra, isso é conversa para se puxar numa tarde de bebidas num lugar feio como esse?! Cala a boca, veja as besteiras que já está dizendo. Como, numa cidade retardatária, provinciana e desgostosamente prepotente uma coisa como essa seria permitido? Você está doido, amigo.
Demófilo: Ah, tudo bem. Vamos mudar de assunto. Não dá pra discutir isso com você. Você é muito cabeça dura e perdeu a idéia das gratificações de morar numa cidade promissora como esta. Virou um desiludido.
A conversa se excitava, mas também já estava chateando. Dava para ver em ambos que queriam acabar logo com ela.
Filócrito: Quer saber de uma coisa, Demófilo! Você está doido porque está apaixonado por essa cidadezinha de nada. Sabe quando a gente transa com qualquer pessoa e fica aquele gosto estranho de terra na boca?... É a mesma coisa essa cidade; ela pode até te dar um ou dois orgasmos na vida, mas vai ficar é sempre esse gosto de terra e merda em sua boca. Fique por aqui algum tempo, e você vai ver.
sábado, 14 de julho de 2007
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2 comentários:
Feira de Santana é uó, do ó, do borogodó.
tudo está explicito, a gente que não quer ver.
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